Longe do porto seguro...


Um conto sobre a rotina, correr riscos e quebrar o protocolo de nossas vidas.




“Você que só ganha pra juntar/O que é que há, diz pra mim, o que é que há?/Você vai ver um dia/Em que fria você vai entrar/Por cima uma laje /Embaixo a escuridão /É fogo, irmão! É fogo, irmão!/Você que não pára pra pensar/Que o tempo é curto e não pára de passar/Você vai ver um dia, que remorso! /Como é bom parar/Ver um sol se pôr/Ou ver um sol raiar/E desligar, e desligar” (Testamento - Vinicius de Morais e Toquinho)




Ouvira dizer certa vez que - “Se um homem não sabe a que porto se dirige nenhum vento lhe será favorável” . Ele era uma destas pessoas. Controlado, metódico. Planejava tudo, desde uma simples ida ao cinema até uma viagem ao exterior. Todos os amigos ficavam impressionados com a sua capacidade - Na verdade eles usavam a palavra: compulsão - de organização e controle. Ele tinha uma métrica. Que era perceptível até pelo elegante terno - corte perfeito - em plena harmonia com a camisa - da mais pura seda - dos sapatos combinando com o cinto que, é claro, combinavam com a bela pasta de pelica.
No trabalho não era diferente. Sua sala era ampla, bem adornada, com a assepsia de um hospital. Tudo organizado, do porta-lápis sobre a mesa até a placa de identificação na porta. Tinha hora para tudo. Cumpria seus prazos á risca. Nada saia da sua rotina estrategicamente traçada.
Em casa, um apartamento num edifício de alto luxo, numa parte nobre da cidade. Tudo se encontrava em seu lugar. Limpo, organizado, simétrico. Até seu cachorro vivia uma rotina. Nem se ouvia o latir do animal. Seus hábitos eram completamente previsíveis. Sabia-se, por exemplo, que ele acordava, tomava seu suplemento vitamínico, fazia sua higiene pessoal, lia o jornal enquanto fazia o seu desjejum, depois de uma segunda higiene pessoal e da costumeira averiguada no todo, ele seguia para o trabalho. Cumprimentava sua secretária, dirigia-se para a sua sala e despachava o serviço do dia. Parava para o almoço, sempre ia ao mesmo restaurante, pedia o mesmo prato, a mesma bebida, até o preço que pagava era o mesmo. Sabia exatamente o que aconteceu, acontece e acontecerá.
Para ele, ter controle era isso, saber e planejar com antecedência. Analisava minuciosamente todas as saídas, todas as possibilidades, até quase a exaustão – Não corria riscos, quaisquer que fossem.
Certo dia, num final de semana qualquer, enquanto corria na sua rota habitual pelo parque. Deparou-se com um muro, sujo, pixado. Mas na verdade o que lhe chamou a atenção foi uma pixação, em letras rebuscadas, como se houvessem sido escritas á mão delicadamente. Nunca reparara naquele muro que era, para ele um dos símbolos da desordem e do caos da sociedade, mas aquela frase o tirou de seu trajeto normal, ele parou, fixo e leu em voz alta, sem se importar com os passantes.
- “Daqui á vinte anos você terá mais desapontamento pelo que deixou de fazer do que pelo que fez. Então, solte as amarras, veleje, pegue os ventos fora do porto seguro. Explore, sonhe, descubra.” Mark Twain, escritor americano. – Leu como se alguma voz que não a dele o dissesse cada palavra daquelas. Ficou ainda parado mais algum tempo, como se estivesse assimilando. Foi-se embora, caminhando desta vez.
Chegando em casa viu tudo como sempre deixara, “organizadamente organizado”. Não pensou muito, não levou nada. Apenas saiu. Largou tudo, não deixou explicações. Simplesmente não apareceu no outro dia como de costume. Hoje, sabe-se dele que vive feliz como nativo numa ilha afastada no interior do litoral da Bahia.

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Postscriptum:

Caros amigos. O primeiro conto do ano! Ando sem inspiração ultimamente e, confesso, um tanto quanto desanimada também. Mas sei que logo, logo, um ar de bom ânimo saturado de boas energias irá me arrebatar avassaladoramente, tomar o lugar ora desanimado e renovar as esperanças que se encontram perdidas. Espero que gostem, comentem, critiquem ou elogiem, sugiram ou simplesmente, divirtam-se com esta nova estória.

Abraços! Muita luz, muita força, muito amor e muito, muito samba pra todo mundo!

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Trilha Sonora - Para ouvir enquanto lê:

- Testamento (Vinicius de Morais e Toquinho_idem)

 Vinicius De Moraes e Toquinho - Testamento - Vinicius De Moraes e Toquinho - Testamento


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Trilha Sonora II - O som que embalou este post:

- Panorâmica (Skank_Samuel Rosa e Chico Amaral)

 skank - Panorí¢mica


- Casa Aberta (Marina Machado_Flávio Henrique e Chico Amaral)

 Marina Machado - Casa Aberta


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Sala de Projeção - O que a Bailarina anda assistindo:

- "Meu nome não é Johnny" (Dir.Mauro Lima/com Selton Mello e Cléo Pires) - Excelente!

Comentários

Cléu Sampaio disse…
Olá, Cinara

Nova por aqui, tô conhecendo e gostando do blog. Voltarei mais vezes.

Abraço.
muito de mim disse…
demorei mais achei seu blog...
bem,amei o texto,amei as musicas tbm!

ps:só lembrando,sou a thamiris,filha da isis que trabalha com a cintia..

bjinhus
Moni disse…
Olá,

Adorei...

Muito bom essa cronica...

vamos sair da rotina...

beijos
Eu adorei o conto. Creio que já o conhecia, mas quer saber? A mim me pareceu novo. Creio que já há algum tempo venho vivendo assim, embora ainda muito organizada, mas quando o sol aparece tranco à porta do servico de casa e vou para o jardim com as crinacas brincar. Quando tenho muito prá fazer, nao fico mais desesperada pensando o que eu devo fazer primeiro. Faco o necessário e depois faco as outras coisas à medida do possível e das minhas forcas. Estou no momento mais para ir para uma ilha e aproveitar do sol, mas isso só é um sonho aqui dentro de mim. Quem sabe um dia esse sonho nao agüenta mais ficar preso e cria forcas suficiente para sair. Tudo tem o seu tempo e aquele homem só pôde entender o significado daquela frase no muro no tempo certo.
Nao sabia que vc visitava Pensamentos soltos, tá vendo como o mundo é pequeno?

Boa semana, adorei o texto e às músicas.

Beijao

Daniel Aegerter
Am Lindenplatz 5
40723 - Hilden
Germany

Obrigada, beijao

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