Aluga-se



Quando o novo morador chegou tudo estava em ordem. A casa estava perfeita, pintada, arrumada, consertada. O ultimo inquilino a havia deixado pouco tempo, sem maiores estragos. Apenas pequenos consertos foram necessários - uma janela que não fechava direito aqui, um furo numa parede ali, aquela maçaneta frouxa - Enfim, fora um bom inquilino, mas chegou a hora de partir, deixou tudo acertado e nunca mais foi visto.

Diferente do antigo o novo morador chegou fazendo alarde. Deixando tudo do seu jeito, pintou as paredes de cores intensas e no quarto principal colocou uma enorme foto de um por do sol numa praia paradisíaca e tranquila de algum canto do país. Era possível o senhorio ouvir um som alto, ritmado, forte e envolvente. Misturava-se às vezes ao da própria casa e era difícil definir da onde vinha. Havia festas, muitas festas, intermináveis. E havia um perfume inconfundível que exalava e deixava o ar quente e acolhedor. Toda a atmosfera em volta da casa fora modificada. Haviam poemas escritos a esmo sobre a mesa da varanda, livros, muitos livros espalhados por estantes, havia conversas, havia a cerveja gelada, havia o violão sempre em acordes, havia a vodca e sim, havia um sorriso lindo e único.

O novo morador promoveu a mudança. Despertou tudo o que parecia adormecido à sua volta, libertou tudo o que estava cativo em seu entorno, quebrou tudo o que fora construído de forma frágil. Ele modificou o ambiente com suas palavras, com sua atitude, com sua cultura, com sua presença. Nada mais lembrava sequer que estiveram ali outros antes, nada. Parecia que tudo era dele, que sempre fora dele, tudo parecia exatamente ele.

Mas um dia - por mais que tardasse - o novo morador foi embora. As raízes que criara não foram suficientemente fundas para mantê-lo ali, nem se sabe se ele o quisera. O novo morador foi como chegou, embora o alarde da saída em nada lembrasse o que foi feito na chegada. Saiu à francesa, mas não temeu que a sua ausência fosse notada mesmo porque durante muito tempo ela de fato não seria. Sua presença era muito mais forte mesmo quando ela já não mais se fizesse. O senhorio assistiu a sua partida da janela escondido sob a cortina, não foi capaz de dizer uma palavra sequer, não sabia se por coragem ou por falta dela. Assistiu tudo com os olhos atentos, e por mais que não quisesse aceitou a condição.

Antes de sair colocou a chave debaixo do tapete da porta. Foi embora de cabeça erguida, como chegou. Não levou nada embora tenha trazido tudo. O que lhe acompanhou foram apenas o sorriso lindo, o rastro do perfume pelo ar e aquela canção. Depois que se foi o senhorio saiu, o pranto contido à custo agora corria livremente, recolheu a chave e voltou-se para si. Durante muito tempo a placa de “Aluga-se” não seria colocada à porta daquele coração.

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Trilha sonora:

"Casa Aberta" (Marina Machado_Flavio Henrique e Chico Amaral)

Comentários

Unknown disse…
Magnífico - Deu até um aperto no coração.
[...]"Sei lá se por coragem ou falta dela".
Você já tem um livro?
Beijos
muito de mim disse…
Lindo o texto Cina...
Lendo esse seu texto vejo tanto de mim...aiai!
bjus
Fabiana... disse…
cheguei aqui... e amei esse texto! perfeito. voltarei sempre.
beijocas...
Késia Maximiano disse…
Hey, psiu..
Volta logo, vai..
:)

Beijos
TIAGO SÂNZIO disse…
Lindo texto Cy!! Daqueles que eu afirmo: Gostaria eu de ter escrito... rs

beijooss!!

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