12.05.2016


Querida Democracia,

Me desculpe os versos simples, queria dizer adeus. Não sei quando você voltará, se é que volta.

Queria também pedir sinceras e sentidas desculpas, por tratarmos-te de maneira tão vil. Somos um país relativamente jovem, ainda carregamos o instinto atávico servil e passivo, resquício do passado colonialista,  e vivemos na eterna dialética do senhor e escravo, onde os senhores, 500 anos depois, ainda são os mesmos de outrora.

Talvez o fato de sermos jovens, faça de nós inconsequentes, nos calando os ouvidos e a boca, tragando-nos à cegueira de conveniência a ponto de renegarmos a tua existência, ignorando o fato de que ao fazê-lo, renegamos também a nossa própria como sociedade. Talvez essa mesma juventude esteja tão transviada que reconheça como herói o teu algoz, transformando em mito aqueles que a subjugaram e, num paradoxo nada sutil, tenha como juízes de um crime aqueles que o cometem, enquanto o que é julgado nada tem que o coloque na condição de réu.  Talvez essa juventude seja tão imatura que esqueceu-se dos horrores dos anos de chumbo, daquela era obscura em que você se viu mergulhada em sangue à mercê dos que tolhiam a liberdade e a esperança, enquanto nos porões os gritos dos que levavam tua bandeira eram abafados pelos horrores da tortura e, por isso, achem natural ter um torturador exaltado em rede nacional. Ou, talvez, essa juventude seja tal qual uma criança mimada, e por isso não aceite que o filho da empregada, descendente do escravo, do índio, 'preto', 'pardo, 'pobre', 'favelado', sente-se a seu lado no banco da universidade federal, tampouco viaje para Miami, tenha uma casa própria, um carro popular ou um título de doutor que ateste a sua ousadia de ter saído da senzala.

Eu tenho medo, Democracia. Tua saída tão abrupta nos mergulhará numa escuridão abissal, num horizonte deturpado por falsas promessas, sustentado por discursos apopléticos de um futuro que começa apoiado na constituição jogada aos porcos, em jogos políticos onde todos querem a cereja do bolo  - entende-se, poder - adornando sua fatia grande e gorda,  travestidos de interesse pelo povo, pela família, por Deus, pelos filhos e filhas que jamais conhecerão a realidade de um país como o nosso de dentro dos seus berços de ouro, pela moral e bons costumes que bem sabemos nada tem de bons.  Não, eu não fechei os olhos, eu não me iludi, tenho a decência de reconhecer que houveram falhas, muitas falhas, houveram omissões de todas as ordens, houve descaso de todos os graus e, justamente por isso, eu vi claramente se instaurar o golpe, o conchavo, a discórdia, a vaidade e a ganância. Vi quando chegaram com seus ternos bem cortados pagos com o dinheiro público, vi quando com seus  votos a pegaram pelo braço e te botaram porta à fora aos brados de 'tchau, querida'. E é disso que eu tenho medo, de que eles agora sentem-se em seus tronos e de lá, tal qual um rei louco, observem o povo, meu pobre povo, ser consumido pelas chamas do ódio que eles ajudaram a disseminar. Sobretudo, tenho medo de que não haja sobre isso um tilintar de panelas, uma convocação geral pelo 'bem da nação', uma mídia que esteja disposta a derruba-los ou uma indignação tímida que seja.

Eu tenho medo, muito medo e tua partida só aumenta esse temor. Mas nem o medo, nem as lágrimas vão me eximir da luta, e é por isso que eu te escrevo. É em nome do teu legado, é em nome do passado que nos condenou, em nome desse futuro, mesmo cheio de incertezas, que não fugirei à luta. É em nome do meu povo, que peço-te perdão por muitas vezes não saberem o que fazem. O tempo urge, o caminho é longo, as batalhas diárias, eu estarei aqui contrariando as expectativas, combatendo as corrupções diárias a que todos somos postos à prova, sendo o coração valente em meio aos lobos, lutando para tê-la de volta ao lugar de onde nunca devia ter saído. Porque, assim como meu povo, eu não desisto: nunca.

Um grande e caloroso abraço, espero ansiosamente rever-te em um futuro breve.

República Federativa do Brasil

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Post Scriptum:

Parece 1964, mas é 2016. O golpe novamente venceu a democracia, infelizmente viveremos pra ver este dia nos livros de história,  lamentável. 

Abraços de luta, 

Bailarina

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